SOCIALISMO: Um Projecto de Sociedade


Miguel Judas

CAPÍTULO 12 Socialismo - a Dimensão Cultural Desalienação (ou Reintegração)

A Cultura e os seus domínios

A Cultura compreende os valores, éticos, morais e estéticos, as regras e relação sociais, crenças, conhecimentos e saberes, as tecnologias e modos de fazer, os modos e hábitos de consumo, a linguagem e modos de comunicação, os modos de organização e as instituições sociais, económicas e políticas e as realizações materiais, artísticas e económicas que caracterizam os diversos grupos humanos. A Cultura tem duas características fundamentais: a) Constitui um mecanismo adaptativo do Homem, que lhe permite responder com rapidez e sucesso aos desafios do meio. Este mecanismo de resposta rápida complementou as limitações da lenta evolução biológica, proporcionando ao Homem uma extraordinária vantagem comparativa relativamente a todo o restante mundo animal; b) Constitui também um processo cumulativo no qual as modificações adaptativas traduzidas por uma geração passam à geração seguinte, de modo que a Cultura se transforma perdendo e incorporando aspectos mais adequados à sobrevivência e reduzindo o esforço das novas gerações. As definições acima enunciadas evidenciam bem a extrema amplitude e profundidade do processo de desenvolvimento cultural de um grupo humano (povo), o qual envolve, quotidianamente, a totalidade dos seus membros. O processo cultural realiza-se pela participação permanente de todos os membros de uma sociedade, de modo contínuo desde o nascimento até à morte. A Cultura estrutura-se segundo os seguintes domínios interdependentes: 1 – Ideologia ou Projecto de Sociedade 2 – Valores (Éticos, Morais e Estéticos) – Liberdade, Paz, Solidariedade, Honestidade...) 3 – Saberes e Conhecimentos (Crenças, Ciências e Tecnologias) 4 – Cidadania (Individual e Social) – Espírito Crítico, Autonomia, Iniciativa, Responsabilidade, Organização e Relações Sociais, Instituições, Comunicação 5 – Realizações (Individuais e Sociais) – Produção, Património Material e Imaterial 6 – Renovação Simbólica, Criatividade e Inovação (Artes e Investigação) A Cultura constitui toda a instrumentação de origem social (não genética) de que os Homens dispõem para a sobrevivência. Decorre da observação directa da Natureza, do esforço de compreensão da sua diversidade, mecanismos e regularidades e, também, do que é apreendido da vida social, num processo cumulativo ao longo das gerações. Tem, portanto, duas origens ou fontes, a Natureza e a Sociedade. A Cultura, através da criatividade (a identificação do novo problema e a concepção da respectiva solução) e da inovação (a concretização e experimentação da nova solução), permite ao Homem adaptar-se com êxito às alterações verificadas no meio, natural e social. As Culturas humanas são diferenciadas como reflexo tanto da diversidade de circunstâncias e de problemas que os diversos grupos humanos tiveram de resolver nos respectivos contextos geográfico-ambientais ao longo dos seus processos históricos, como também das diferentes soluções que encontraram para problemas idênticos. Como prova a ciência actual, mais do que factor de ordem genética, é a Cultura o que constitui o principal elemento identitário de um povo. No entanto, todas essas Culturas têm traços comuns, que denotam não só as mesmas aspirações básicas de todos os Homens, como algumas regularidades nos trajectos que os diversos grupos humanos tiveram de percorrer, apesar do relativo isolamento que mantiveram durante milénios entre si.

Cultura e Ideologia

A Cultura não se confunde com a Ideologia. A Ideologia é o domínio da Cultura que respeita ao questionamento (à apreciação crítica) dos critérios mais gerais de organização da sociedade num determinado circunstancialismo natural e social, e que discute o Projecto de Sociedade a desenvolver, de modo a serem superados os seus macro-constrangimentos ou factores de vulnerabilidade face à Natureza e ao meio social mais vasto, às sociedades envolventes com que se relaciona. No seio de uma mesma sociedade coexistem sempre várias ideologias, várias idealizações do futuro com Projectos mais ou menos elaborados. Com a "divisão do trabalho" e o surgimento de classes sociais diferenciadas, as classes que, pelos recursos ou pela força, se tornaram dominantes e que, nessa base, estabeleceram uma "ordem social" que lhes era favorável, procuraram sempre erradicar as ideologias concorrentes e ocupar todo o espaço social com a sua própria ideologia, uma ideologia que justificava os novos papeis na sociedade e as novas relações entre os seus elementos. Através das novas instituições criadas, do uso do conhecimento, da sonegação e manipulação da informação, do uso das manifestações artísticas, da chantagem psicológica, etc., a ideologia da classe dominante vai invadir toda a vida da sociedade e enquistar-se persistentemente na sua Cultura. Por isso, a Cultura de um povo dividido em classes está sempre impregnada com os elementos ideológicos da classe dominante. Não há, pois, hoje no mundo, uma Cultura "neutra", gerada espontaneamente pelos próprios povos em resultado da sua observação independente, atenta e crítica quer dos fenómenos naturais quer dos sociais. O patriarcalismo, caracterizado pelo domínio dos homens sobre as mulheres e os filhos, o hierarquismo, caracterizado pelo domínio dos "superiores" sobre os "subordinados", o patronato, caracterizado pelo domínio dos patrões sobre os assalariados, o elitismo, o racismo, o colonialismo, o nacionalismo, o individualismo, bem como todos os fenómenos de fragmentação social que subsistem na consciência de muitas pessoas, são elementos da invasão ideológica da classe dominante com reflexos na vida diária de toda a sociedade. A tal ponto esses elementos ideológicos foram inculcados e generalizados que as classes dominantes levam os povos a acreditar que esses fenómenos resultam das suas próprias experiências e que existem por sua decisão, que foram por ele seleccionados como elementos da sua própria e genuína Cultura. Tais fenómenos fragmentadores, são apresentados pela burguesia como "norma inata", cuja prática estimula no seio das camadas populares como meio de as tornar cúmplices do seu sistema de dominação. São as expressões "populares" da ideologia burguesa, a corporização social dos "sete pecados mortais". Numa sociedade fragmentada, os grupos dominantes utilizam toda uma bateria de processos de manipulação das consciências de modo a fazer crer aos dominados que a organização social existente é a melhor para todos e, por essa via, exercer o seu domínio sem ter de utilizar a imposição violenta. Entre esses processos de manipulação simbólica encontram-se desde a Mentira (que só subsiste mantendo o conhecimento inacessível aos povos, mantendo-os ignorantes) até à "benigna" utilização do chamado "discurso lacunar", o qual sugere conclusões falsas a partir de proposições que o não são. São inúmeros os processos utilizados pela burguesia e seus aliados para manter o povo agarrado à sua ideologia e à aceitação do seu domínio. Uma Cultura ideologicamente colonizada pelos opressores é uma Cultura de Submissão. Pelo contrário, quando sectores populares resistem a essa colonização, rejeitam os elementos da ideologia das classes dominantes e, de modo autónomo, questionam e geram um outro Projecto de Sociedade que favoreça as grandes maiorias, estão a desenvolver uma Cultura de Libertação. A ideologia, o Projecto de Sociedade da Revolução Socialista é o de uma sociedade integrada, isenta de quaisquer relações de dominação ou privilégios, constituída por cidadãos livres e civicamente iguais. Os principais instrumentos ao dispor da ideologia socialista são o conhecimento, a verdade, a crítica e auto-crítica, a cooperação, a responsabilidade e o exemplo. É por seu intermédio que os revolucionários difundem a nova ideologia e ganham o Povo para o seu Projecto de Sociedade Livre, Justa e Sustentada.

Duas Culturas em confronto aberto

A cultura capitalista espoliadora, encontra-se fortemente impregnada no tecido social. Ela gera, por um lado, o mimetismo das práticas burguesas de apropriação e, por outro, atitudes de submissão e de obediência. A cultura socialista, ao contrário, radica numa cultura libertária que também acompanha os povos desde tempos imemoriais e que se tem manifestado nas suas constantes lutas de resistência e rebeldia contra a opressão. A erradicação da cultura capitalista da submissão não se decreta nem tão pouco se consegue pela simples retórica. Constituindo a Cultura um "mecanismo adaptativo do Homem que lhe permite responder com sucesso aos desafios do meio" e, simultaneamente, um processo cumulativo, as culturas capitalista e de submissão só serão erradicadas quando as gerações anteriores deixarem de as transmitir às seguintes, quando elas próprias já tenham reconhecido e incorporado os valores, saberes e modos de agir da cultura socialista e libertária como susceptíveis de lhes garantir maior sucesso enquanto instrumentos de sobrevivência e realização humana. O estado actual do mundo na sua globalidade e, em particular, de muitas sociedades, despertam cada vez mais cidadãos para a necessidade de reformular radicalmente o conjunto e a hierarquia de valores que têm governado a humanidade e de conceber e experimentar formas de organização política, social e económica alternativas ao capitalismo. O capitalismo conduz à destruição do homem e da natureza. Persistir nele é o caminho da destruição e do aniquilamento. O apego de tantos milhões de cidadãos de todo o mundo ao processo democrático libertador e ao projecto socialista, demonstrado nas sucessivas lutas que têm travado e vencido contra a burguesia, mostram já quanto a nova cultura alternativa impregnou a humanidade. Porém, também nesta esfera, grande parte do "terreno" se encontra ainda ocupado pelo adversário reaccionário, necessitando as forças revolucionárias desenvolver as adequadas ofensivas até conseguirem a hegemonia. Será, porém, através do acesso irrestrito ao Conhecimento e à vivenciação directa, racional e emotiva, da construção com êxito da nova sociedade que essa nova cultura se desenvolverá e consolidará de forma extensiva. O acto e a aventura da construção do socialismo é, em si própria, uma obra de arte que, ao ser feita, faz simultaneamente o artista. É, pois, na própria marcha para o Socialismo, pela participação protagónica que a nova cultura socialista se desenvolve. A cultura capitalista espoliadora assenta no racionalismo fragmentador, isto é, em dividir um todo nas suas partes constituintes e utilizar ou optimizar somente as partes que lhe interessam. Passa-se isso no ser humano, do qual é utilizada a única faceta que interessa ao capital, como animal de trabalho organizado em "profissões" e, mesmo aqui, através da "especialização", só a aptidão específica que lhe convém; o mesmo quanto à natureza e em todos os demais domínios. A "separação" ou alienação é, por isso, uma arma conceptual do capitalismo. A própria organização institucional da sociedade obedece ao mesmo princípio da especialização e da "separação": saúde, educação, apoio social, cultura, justiça, segurança, produção, comércio, serviços, organizações para jovens, para idosos, para deficientes, etc. Este racionalismo fragmentador, tendo embora consequências sociais e humanas profundamente negativas, evidenciadas nos variadíssimos papeis, por vezes contraditórios, que os indivíduos têm de desempenhar diariamente como pais e "chefes" de família, trabalhadores, consumidores, adeptos de um clube desportivo ou seguidores de uma religião, peões ou automobilistas, eleitores, etc., desempenhou um papel histórico importante no desenvolvimento científico e técnico e da eficiência económica, conquista fundamental que o capitalismo, enquanto sistema histórico, deixará para a posteridade. Porém, desde há já muitos anos, essa perspectiva fragmentadora deixou de ser um factor de "progresso" e passou a evidenciar limitações que comprometem o futuro da humanidade. Perante essas limitações, no campo da gestão empresarial, aquele onde o capitalismo trata com mais desvelo, começaram a surgir teorias e práticas de cariz reintegrador, as chamadas abordagens sistémicas, que tendiam a observar as "partes" no plano das suas interacções dentro do todo. No plano da ciência, após a "separação" desta da filosofia e o seu subsequente fraccionamento em muitas "ciências" diferentes, "especializadas", teve de se caminhar, para continuar a obter resultados, em sentido inverso, no sentido da constituição de equipas ou instituições multidisciplinares, reintegradoras. Nas chamadas áreas sociais, começaram a ensaiar-se as abordagens integradas, interdepartamentais; mesmo na investigação histórica, é hoje imprescindível o concurso de vários ramos científicos, desde a antropologia à geologia a climatologia, a botânica, etc., para se chegar a algum conhecimento novo. Nas condições da actual globalização, cada empresa por si própria, como unidade económica básica do capitalismo, deixou de ter relevância, passando a considerar-se somente o seu papel em toda uma cadeia completa de concepção, produção, distribuição e comercialização. As grandes metrópoles, com todo o seu complexo humano, cultural, infra-estrutural, jurídico, sanitário, geográfico, ambiental, etc., constituem hoje as unidades económicas básicas do sistema capitalista globalizado. Mesmo no domínio mais fundamental do processo alienador, o da produção, no qual, pelo trabalho assalariado, os homens são dissociados dos meios de produção e do resultado do seu trabalho, o capitalismo teve de reconhecer, se bem que muito parcialmente, só para alguns dos seus quadros técnicos e de gestão, a qualidade de "capital humano", procurando "associá-los" à sua actividade exploradora da imensa maioria, reduzida a simples "precários" ou abandonada à pobreza e à miséria. O caminho, portanto, indicado pelo próprio capitalismo mas que ele já é incapaz de percorrer salvaguardando a Humanidade, é da reintegração das "partes" numa perspectiva holística, a do racionalismo holístico, aplicado a todo o universo da vida humana, social e natural. Esse caminho é o que corresponde ao Socialismo realizar. Fazer progressivamente regredir a "divisão do trabalho", entre trabalhadores e gerentes, entre governantes e governados, entre actores e espectadores, entre sãos e deficientes, entre homens e mulheres, entre adultos e crianças, entre activos e inactivos, enfim, fazer derrubar os muros da alienação e permitir aos Homens reencontrarem-se consigo mesmos, com e nas respectivas totalidades, como Cidadãos Livres e Integrais. Por isso o Socialismo, através da Democracia Radical e da apropriação colectiva dos meios de produção e dos resultados da actividade produtiva, reintegra cada indivíduo na sua condição de produtor livre e de cidadão responsável. Estas considerações apontam para novas soluções institucionais, para uma nova institucionalidade, a qual não tem só que ver com as questões do Poder Político e do novo carácter cooperativo e comunitário da produção material e dos serviços, mas, também, têm tudo a ver com a nova Cultura Socialista. Nesse sentido, todas as instituições, hoje fragmentadas, "especializadas", deverão assumir, tão rápido quanto possível, a multiplicidade das "funções" humanas e sociais. No futuro Socialista tenderá a deixar de haver "escolas", "unidades económicas", "centros culturais", "centros de investigação", "instituições de serviços públicos", "lares de idosos", "hospitais", "unidades de defesa e segurança", etc. para se constituírem redes de comunidades onde, globalmente, todos fazem tudo, de acordo com o principio da subsidiariedade. Consequentemente, embora mantendo um "core business" específico, uma actividade fundamental, todas as instituições hoje especializadas num só tipo de actividade se deverão converter simultaneamente em "unidades de produção económica", "centros de formação e promoção cultural", "centros de serviço à comunidade" e "centros de protecção à natureza". Erradicar a alienação! Esta é a tarefa estratégica cultural do Socialismo. A luta contra a alienação percorre todos os recantos da sociedade, desde o nível pessoal mais íntimo até às instituições sociais de mais elevado nível. É uma luta pela reintegração de todos os componentes, humanos, sociais, científicos, económicos, culturais, etc., cuja "separação" permitiu à sociedade humana evoluir num dado momento da sua história mas que esgotou as suas potencialidades; o Futuro, o caminho do desenvolvimento da Humanidade está, em primeiro lugar, na desalienação. A prática alargada da cooperação, da solidariedade, da responsabilização social e ambiental e do trabalho colectivo e em rede, possibilitarão não só as condições de erradicação dos elementos da ideologia burguesa no seio do Povo como incentivarão o desenvolvimento da Cultura Socialista. A Revolução Socialista, evidenciando-se em primeiro lugar nas suas dimensões política e económica, ao fazer dos "governados" também governantes e ao promover a extinção do trabalho assalariado e converter os trabalhadores também gestores económicos, ao afirmar os Valores que assegurarão a sustentabilidade futura da sociedade, constitui o primeiro acto da grande Revolução Cultural que permitirá a adaptabilidade da humanidade às novas condições do meio, próprias do nosso tempo. Porém, a Revolução deverá, ela própria, libertar-se do "departamentalismo", reflectido neste mesmo documento (por razões meramente metodológicas), que é considerar a Sociedade constituída pelas esferas política, económica, social, cultural, etc. Em todas as estruturas, formais ou informais, da Sociedade, ocorrem todos esses fenómenos; todas são palco da luta global.

 

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